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A análise do Coringa pela filosofia sartriana: a mudança de um projeto de ser

Contém spoiler.


Muito se tem discutido sobre o filme Coringa. Muitos acusam o filme de vangloriar o vilão e torna-lo apenas uma vítima da sociedade. Acredito que Sartre, possivelmente, o maior defensor da liberdade ontológica do homem, veria o filme com outras lentes.


Sartre tinha fascínio pela personalidades errantes. Em vida, escreveu longas análises sobre os escritores Gustave Flaubert e Jean Genet. Em seu contos, Sartre entrava no universo subjetivo de seus personagens. Por isso, é possível, que o Coringa fosse um objeto de interesse de Sartre. Porém, não temos a pretensão de escrever como seria a análise de Sartre sobre o Coringa e sim, usar filosofia sartriana como ferramenta para criar um análise sobre o Coringa.


A liberdade para Sartre se constitui pela característica fundante do homem. O que Sartre quer dizer com esta formulação é o homem não é hipótese alguma determinado por algo que ele possua. Então, o Coringa não nasceu Coringa, ele tornou-se Coringa, como bem o filme mostra essa transformação de Arthur Flechter em Coringa, um frágil paciente psiquiatrico em um vilão perverso.


Para Sartre, nada retira a liberdade que constitui o homem, desse modo Arthur sempre foi livre para ser outra coisa diferente do Coringa. Porém, a liberdade Sartreana não se exerce no vácuo, ela é situada na existência concreta. Somos responsáveis por fazer algo da nossa situação existencial. Por situação existencial, Sartre se refere à tudo que compõe nossa existencia, a família, a história pessoal, condição corporal, condições sociais, a cultura, as relações sociais, etc.


Arthur teve início dramático, uma criança adotada e que quando pequeno foi espancado pelo seu padrasto com a conivência de sua mãe, que sempre frequentou hospitais psiquiátricos. Neste momento, a criança Arthur passa por diversos traumas, de início a separação da mãe biológica e depois, a agressão e dor ao próprio corpo e a impotência de reagir a agressões. Ronald Laing, psiquiatra existencial, mostra que a criança pequena vai criando a sensação de segurança no mundo, na relação primária os pais. Então, uma criança vítima desses abusos físicos tende a sentir o mundo como uma ambiente tenebroso e manter fechado para as relações com o outro, como forma de se proteger, não conseguindo sentir prazer nestas relações (durante o filme, sao raros o momentos em que em demonstra qualquer prazer na relação com o outro, um momento é quando brinca com a criança no ônibus, outro quando interage com o seu ídolo pela primeira vez e também, no elevador com sua vizinha).

Desde pequeno, a Arthur é negada a possibilidade de ser criança, é necessário que ele se torne responsável, para cuidar da mãe. Arthur ouve de sua mãe que ele nasceu para trazer alegria ao mundo.


Arthur escolhe como seu projeto de vida ser comediante e assim, atender as expectativas de sua mãe. A posição de comediante, ainda lhe permite manter uma posição ambígua em relação ao mundo que o massacrava, permite que ele ironize este mundo, mas também, o ame e seja amado por ele (usando aqui conceito sartriano de projeto que não é uma escolha voluntarista de alguém que escolhe entre A e B e sim, uma escolha pré reflexiva de um projeto de ser).


Porém, ser amado é algo que passa longe da vida de A., é constantemente agredido pelas pessoas que passam pela sua vida, que lhe são sempre hostis. Porém, A. “segura” seu odio pelo mundo na tentativa de realização de seu projeto de ser, porém o projeto de A. chega ao final, quando é humilhado pelo comediante que idolatrada e ao mesmo tempo, descobre sobre o passado de sua mãe, assim decaindo diante de si a imagem de uma mãe cuidadora.


Postulo que era muito custoso a A. sustentar o seu projeto inicial de ser diante da humilhação que o mundo lhe dava. Algumas frases de A. sao emblematicas para explicar a sensação de isolação existencial. Ele diz para a assistente social que o atende “Você não me ouve. Você sempre faz as mesmas perguntas. Você pergunta como estou no trabalho, se tenho pensamentos negativos. Eu só tenho pensamentos negativos”. Já no momento limítrofe A. diz: “Eu sempre tive a sensacao que eu não existia”. Nestes momentos, percebe-se a solidão com que A. vivia seu desespero. Não obstante, vemos no início do filme, um A. que se preocupa com a mãe, que é capaz de sentir empatia pelos seus agressores (ao ser fisicamente agredido por meninos na rua, ele diz que “sao só garotos”, talvez, também se identifique com os agressores).


Ronald Laing explica o processo psicótico como a ruptura do relacionamento do sujeito com o mundo e consigo mesmo, no qual o sujeito sente se incapaz de sentir se a vontade no mundo e sente-se numa desesperadora solidão existencial.


Com a queda do seu projeto existencial, A. nao pode mais ser A., o mundo perde todo o sentido, a existência passa ser caótica, perversa e ruim e daí surge o Coringa, o vilão perverso que sente prazer no sofrimento do Outro e ri dos sentidos comumentes atribuidos a existência.


Sartre não estaria interessado em moralizar a ação do Coringa, muito menos em maniqueísmo, do estilo herói ou vilão. Ao olhar sartriano, analisaria como uma possibilidade de ser, uma possibilidade pertencente à humanidade, que o homem Arthur assumiu.

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